O DESEJO DE ENSINAR E A ARTE DE APRENDER
Rubem Alves
Aprendo
porque amo
Recordo a
Adélia: “Não quero faca nem queijo;
quero é
fome”. Se estou com fome e gosto de queijo
eu como
queijo... Mas, e se eu não gostar de queijo?
Procuro
outra coisa de que goste: banana, pão com manteiga,
chocolate...
Mas as
coisas mudam de figura se minha namorada for
mineira, gostar de queijo e for de opinião que gostar de
queijo é uma questão de caráter.
Aí, por
amor à minha namorada, eu trato de
aprender a gostar de queijo.
Lembro me do filme Assédio sexual. A
história se passa numa cidade do
norte da Itália ou da Suíça. Um
pianista vivia sozinho numa casa
imensa que havia recebido
como herança. Ele nem conseguia
cuidar da casa sozinho e nem
tinha dinheiro para pagar uma
faxineira. Aí ele propôs uma troca:
ofereceu moradia para quem se dispusesse
a fazer os serviços de limpeza.
Apresentou-se
uma jovem negra, recém-vinda da
África, estudante de medicina. Linda! A jovem fazia
medicina ocidental com a cabeça mas o seu coração estava na
música da sua terra, os atabaques, o ritmo, a dança. Enquanto
varria e limpava, sofria ouvindo o pianista tocando uma música
horrível: Bach, Brahms, Debussy... Aconteceu que o pianista se
apaixonou por ela. Mas ela não quis saber de namoro, achou que se
tratava de assédio sexual e despachou o pianista falando sobre o horror da
música que ele tocava. O pobre pianista, humilhado, recolheu-se à
sua desilusão, mas... uma grande transformação aconteceu: ele
começou a frequentar os lugares onde se tocava música africana. Até que
aquela música diferente entrou no seu corpo e deslizou para os seus
dedos.
E, de repente, a jovem de vassoura na mão
começou a ouvir uma música diferente, música
que mexia com o seu corpo e suas memórias...
E foi assim que se iniciou uma
história de amor atravessado: ele, por
causa do seu amor pela jovem,
aprendendo a amar uma música de
que nunca gostara, e a jovem,
por causa do seu amor pela
música africana, aprendendo a amar o
pianista que não amara. Sabedoria
da psicanálise: freqüentemente a
gente aprende a gostar de
queijo
através do amor pela namorada que gosta
de queijo...
Isso me
remete a uma inesquecível experiência
infantil. Eu estava no primeiro ano do grupo escolar.
A professora era a dona Clotilde. Pois ela fazia o
seguinte: assentava-se numa cadeira bem no meio da sala, num lugar
onde todos a veriam, acho que fazia de propósito, por maldade,
desabotoava a blusa até o estômago, enfiava a mão dentro dela e
puxava para fora um seio lindo, liso, branco, aquele mamilo atrevido...
E nós, meninos, de boca aberta... Mas isso durava não mais que cinco
segundos porque ela logo pegava o nenezinho e o punha para
mamar. E lá ficávamos nós, sentindo coisas estranhas que não entendíamos:
o corpo sabe coisas que a cabeça não sabe. Terminada a aula os
meninos faziam fila junto à dona Clotilde, pedindo para carregar
a pasta. Quem recebia a pasta era um felizardo, invejado.
Como diz
o velho ditado “quem não tem seio carrega pasta...”. Mas tem mais:
o pai da dona Clotilde era dono de um botequim onde se vendia um
doce chamado “mata-fome”, de que nunca gostei. Mas eu comprava
um mata-fome e ia para casa comendo o mata-fome bem devagarzinho...
Poeticamente trata-se de uma metonímia: o “mata- fome” era
o seio da dona Clotilde... Ridendo
dicere severum: rindo, dizer as coisas sérias... Pois rindo
estou dizendo que freqüentemente se aprende uma coisa de que não
se gosta por se gostar da pessoa que a ensina. E isso porque –– lição
da psicanálise e da poesia –– o amor faz a magia de ligar
coisas
separadas, até mesmo contraditórias. Pois a gente não guarda e agrada
uma coisa que pertenceu à pessoa amada? Mas a “coisa” não é a
pessoa amada! É, sim, dizem poesia, psicanálise e magia: a “coisa”
ficou contagiada com a aura da pessoa amada. Minha avó guardava
uns bichinhos que haviam pertencido a um filho que morrera.
Guardo um peso de papel, de vidro, que pertenceu ao meu pai
E os
apaixonados guardam uma peça de roupa da pessoa amada, e a colocam
sobre o travesseiro, ao dormir... Mesmo depois dela ter morrido. É
como se, através daquela “coisa” que não é a pessoa amada, fosse
possível tocar e acariciar a pessoa amada, ausente.
Pois o
mesmo mecanismo acontece na educação. Quando se admira um
mestre, o coração dá ordens à inteligência para aprender as
coisas que o mestre sabe. Saber o que ele sabe passa a ser uma forma
de estar com ele. Aprendo porque amo, aprendo porque admiro.
Sabendo o que ele sabe eu carrego a sua pasta, como o
“mata-fome”,
faço amor com ele.
Lamento
dizer isso: tive poucos mestres que admirasse. Lembro- me de um
que admiro até hoje, embora já se tenham passado mais de
cinqüenta anos: Leônidas Sobrinho Porto. Professor de literatura, nunca nos
atormentou com informações sobre nomes e escolas literárias.
Ele sabia que não aprenderíamos. Mas quando ele se punha a falar
era como se estivesse possuído. Falava com tal paixão sobre
as
grandes obras literárias que era impossível não ser contagiado. Eu o
admirava porque nele brilhava a beleza da literatura, queijo de que eu
não gostava. Ele me fez amar a literatura.
A dona
Clotilde nos dá a lição de pedagogia: quem deseja o seio, mas não
pode prová-lo realiza o seu amor poeticamente, por metonímia:
carrega a pasta e come mata-fome... Ou, melhor ainda, fica querendo
aprender aquilo que ela ensina. Pois o que uma professora amada
ensina é um seio delicioso...
Fonte:http://www.educardpaschoal.org.br/web/upload/NossosLivros/68_livro_desejodeensinar%281%29.pdf